Confira entrevista exclusiva com Carla Tennenbaum, co-fundadora da Ideia Circular
Por Elen Nunes / Editado por Flavius Deliberalli
Não há mais dúvidas. Diante da emergência das questões ambientais, o mundo precisa se reinventar, se repensar. E isso passa, profundamente, sobre a criação e produção de todos os produtos que consumimos: de alimentos a itens de consumo.
A partir de agora, confira uma entrevista muito esclarecedora com Carla Tennenbaum, co-fundadora da Ideia Circular.
1- Conta pra gente como surgiu e como é o trabalho da Ideia Circular?
A Ideia Circular surge a partir de uma parceria minha com a Léa Gejer, em 2014, quando descobrimos que nós duas estávamos pesquisando a metodologia “Cradle to Cradle” e a economia circular, numa época em que ninguém no Brasil estava falando sobre isso…
Então começamos a trabalhar juntas para promover essa conversa por aqui. Em 2015 a gente criou a Ideia Circular como uma plataforma online para discutir, divulgar e também investigar como “tropicalizar” essas ideias, e como elas poderiam ser aplicadas para inspirar projetos circulares no Brasil. A Ideia Circular oferece vários conteúdos abertos e gratuitos sobre esse assunto, reunidos no site e no nosso blog, que é o maior acervo original sobre economia circular em português, com mais de 100 artigos, entrevistas e estudos de caso. Lá as pessoas podem conhecer muitos exemplos inspiradores e entender os conceitos principais desta abordagem, com um foco no contexto brasileiro.
Como serviços, oferecemos palestras, workshops e treinamentos In company, além de um curso online pioneiro, chamado “Economia Circular na Prática: Entenda, Desenhe, Transforme”, que desde 2018 já formou mais de 500 profissionais de várias áreas e lugares do Brasil. É um curso de aprofundamento e aplicação, que organiza esse conhecimento a partir dos princípios e critérios da metodologia “Cradle to Cradle”, com exercícios mão na massa e um passo a passo para que as pessoas possam colocar tudo isso em prática nos seus produtos e serviços. Tem sido muito inspirador trabalhar de perto com pessoas e projetos tão incríveis e contribuir para essa transformação no Brasil!
2- Nos conte sobre a trajetória da Ideia Circular?
Eu me interesso desde muito jovem por questões ecológicas e sociais. Aos 12 anos fui, com um grupo de colegas, representar minha escola na Rio 92. No ensino médio, ganhei uma bolsa para estudar na United World College, um colégio internacional no Novo México, com outros jovens de mais de 50 países. Voltei com muita vontade de mudar o mundo, ainda que não soubesse bem como… Fui estudar História na USP e, junto à graduação, fiz uma oficina de dois anos com os irmãos Campana e ajudei a criar o grupo notechdesign, um coletivo pioneiro de 11 designers que praticavam um olhar irreverente para os materiais e objetos cotidianos. Foi nessa época que comecei a trabalhar com resíduos de E.V.A., um material não-reciclável que era e ainda é encaminhado às toneladas para lixões e aterros sanitários. Como ele é muito colorido, eu comecei a usar esse resíduo como matéria-prima para peças de arte e decoração. Passei alguns anos pesquisando como criar processos produtivos que substituíssem a cola por encaixes, para não contaminar o material e possibilitar a recuperação e conserto das peças que eu produzia. Essas novas tecnologias foram reconhecidas com vários prêmios de design, e eu busquei programas de empreendedorismo social para pensar como aumentar a escala da produção, absorver mais resíduos, e aumentar os impactos positivos. E foi aí, desenvolvendo um plano de negócios, que eu comecei a perceber a limitação desse trabalho com resíduos, que por mais bonito e valioso, nunca ia resolver o problema desses resíduos. Não só por uma questão de escala, mas também de princípio, porque não adianta trabalhar na ponta do descarte sem um olhar para o processo de extração e produção dos materiais. Então eu fui pesquisar mais, aprender sobre a indústria, sobre ecodesign, e foi aí que encontrei o livro “Cradle to Cradle: remaking the way we make things”, que fala justamente sobre isso. Eu comecei a usar e divulgar essa metodologia – primeiro sozinha, e depois com a Léa, quando descobri que ela era tão apaixonada quanto eu por esse assunto. A Léa é graduada em Arquitetura e Urbanismo, e mestre em Gestão Ambiental Urbana pela Universidade de Wageningen, na Holanda. Lá ela se concentrou em como aplicar a sustentabilidade na construção. Aprendeu sobre o design “Cradle to Cradle” e escreveu uma tese de mestrado sobre a aplicação dessa metodologia no setor de construção. Voltou para o Brasil depois disso, e decidiu abrir seu próprio escritório, chamado Flock, para aplicar todo esse conhecimento no seu trabalho e trabalhar com o fechamento de ciclos de materiais, energia e água.
Um dos primeiros trabalhos que ela fez foi em uma oficina no Araripe, que é uma região de Pernambuco de onde vem 97% do gipsita consumido no Brasil. Michael Braungart, um dos criadores do “Cradle to Cradle”, foi convidado para este workshop para ajudar a criar uma economia circular na indústria do gesso. Ele gostou muito do portfólio da Léa e convidou ela para representar o EPEA no Brasil. E foi nessa época que a gente se uniu e começou a fazer esse trabalho de conversar com vários atores para entender como a economia circular pode ser aplicada no nosso contexto, o que levou à criação da Ideia Circular.
“Em 2015 a gente criou a Ideia Circular como uma plataforma online para discutir, divulgar e também investigar como ‘tropicalizar’ essas ideias, e como elas poderiam ser aplicadas para inspirar projetos circulares no Brasil”
3- Detalhe o “Cradle to Cradle”, o conceito do berço ao berço.
O pensamento “Cradle to Cradle”, que em português significa “do Berço ao Berço”, e a gente também abrevia como C2C, do inglês “C to C”, é uma metodologia pioneira nesse conceito de circularidade, e reconhecida como uma das principais bases teóricas da economia circular. Essa metodologia é a grande referência e inspiração minha e da Léa, tanto no nosso trabalho individual, como na Ideia Circular. Esse conceito foi desenvolvido em parceria pelo arquiteto norte-americano William McDonough e o engenheiro químico alemão Michael Braungart, e começou a ser divulgado a partir de um livro-manifesto publicado por eles em 2002, que impactou muito o universo da sustentabilidade, com ideias bem revolucionárias de como a gente pode transformar a nossa indústria de uma forma positiva.
O termo “do berço ao berço” é uma provocação, porque tem uma expressão que é usada na análise de ciclo de vida que fala “do berço ao túmulo”, quando se avalia o impacto negativo de um produto no caminho linear que vai da extração, que seria o berço, até o descarte, que seria o túmulo. Então quando eles falam “do berço ao berço”, estão questionando por que um produto precisa ter um túmulo.
A ideia é que um produto ou material não precisa ser descartado, se a gente desenhar ele desde o início já pensando no que pode acontecer depois, no próximo ciclo, ou no próximo “berço” de cada material. E com esse pensamento, a gente consegue acabar com a ideia de lixo, já que os materiais são sempre pensados como nutrientes para novos ciclos.
4- No manifesto da Ideia Circular vocês usam a frase “o lixo é um erro de design”. Explique essa afirmação.
Essa frase é o título do nosso manifesto desde 2015, e não foi a gente que inventou, mas foi o jeito que escolhemos traduzir para o português uma frase de um projeto da Inglaterra, o “Great Recovery Project”, que a gente gosta muito, e dizia “waste is a design flaw”. E essa ideia por sua vez é inspirada no pensamento “Cradle to Cradle”, que é a nossa grande base teórica, como eu já mencionei.
A gente acha importante trazer essa perspectiva porque hoje em dia tem muitas empresas e iniciativas falando da economia circular como sinônimo pra reciclagem, ou para o gerenciamento de resíduos – e a gente entende que ela é muito mais que isso. A gente entende que é válido buscar formas de reduzir o desperdício ou inventar novos usos para os materiais descartados. Mas se a gente só trabalha nessa ponta do descarte, gerenciando os resíduos, sem mexer na concepção dos produtos e sistemas (que é o que a gente chama de design), esses materiais vão continuar sendo extraídos, o resíduo vai continuar chegando, e a gente vai ter que fazer um malabarismo cada vez maior, sem resolver o problema na raiz. Então para transformar nosso sistema linear em uma economia circular, a gente precisa repensar todo o sistema, e desenhar produtos e processos mais inteligentes, que mantenham o valor dos nossos materiais em circulação. E isso não só pela reciclagem, mas também com vários outros ciclos internos de maior valor como sistemas de reuso, reparos, redistribuição e remanufatura (pensando nos materiais técnicos), ou no retorno dos nutrientes de uma forma benéfica para a biosfera (pensando nos materiais biológicos). Então dizer que o lixo é um erro de design significa que a gente precisa olhar não só na ponta do descarte, mas principalmente na ponta do design, do projeto, da concepção dos produtos e dos sistemas, para pensar desde o começo como os materiais vão circular com qualidade.
E quando a gente fala de logística reversa, também volta aos problemas do design. Porque se os produtos, componentes ou materiais não forem projetados para serem reutilizados, reciclados ou consertados, é quase impossível ter uma logística reversa efetiva, porque não é viável economicamente para as empresas. Projetar as coisas bem desde o começo ajuda muito na responsabilidade estendida e na logística reversa.
“O termo “do berço ao berço” é uma provocação, porque tem uma expressão que é usada na análise de ciclo de vida que fala “do berço ao túmulo”, quando se avalia o impacto negativo de um produto no caminho linear que vai da extração, que seria o berço, até o descarte, que seria o túmulo. Então quando eles falam “do berço ao berço”, estão questionando por que um produto precisa ter um túmulo.”
5- Você acredita que o atual profissional de design já está criando produtos/embalagens considerando como princípio a economia circular?
Acho que ainda não, mas essa transformação está em curso! A saúde e a circularidade ainda não são critérios de design tão importantes como deveriam ser na criação de qualquer produto. Ainda existe um entendimento de produtos sustentáveis como um mercado de nicho, ou como uma questão só de redução de materiais e eficiência na produção. E a questão do que acontece depois com os materiais ainda passa longe do briefing das empresas e da formação dos futuros profissionais de design e engenharia de produção.
Mas, como eu disse, a gente vê essa transformação acontecendo, e essa consciência e interesse se expandindo. Várias universidades em todo o Brasil entram em contato com a gente pra contar que estão criando programas, matérias e especializações em economia circular, além de estudantes e jovens profissionais que estão pesquisando esse tema. E isso é muito importante, porque se “o lixo é um erro de design”, o design é fundamental para criar sistemas circulares de alta qualidade. E não é só o design de produtos, mas também do design de processos e modelos de negócios. É sobre ser intencional, sobre onde queremos chegar – como indivíduos, como empresas e como espécie: para onde queremos ir? Tudo isso tem a ver com o design, com a intenção. Mesmo se a gente considerar só a materialidade, quer dizer, o design de produtos, componentes ou materiais, a ideia é pensar o que acontece com todos esses recursos valiosos depois do primeiro ciclo de uso.
6- Como vocês consideram que a indústria pode ser mais restaurativa? Percebem esse movimento genuíno no mercado nacional? Em geral, há resistência ou abertura para esse avanço?
No Brasil já existem muitas empresas e iniciativas trabalhando dessa forma regenerativa, quer usem o termo economia circular ou não. Existem empresas pequenas e grandes que estão projetando novos materiais para os ciclos biológicos, ou até mesmo usam resíduos da indústria para produzir materiais positivos para o ciclo técnico. Temos também startups que estão criando ferramentas inovadoras para rastrear materiais por toda a cadeia de valor. Então existem muitos projetos inspiradores e inovadores. E algumas grandes empresas estão repensando o seu modo de lidar com os recursos. Mas existe uma inércia, e também uma certa resistência, um medo de liderar essa mudança.
Muitas vezes, quando tentamos “vender” a ideia de economia circular nas empresas, a reação é “tem mais alguém fazendo isso?”, “vamos ser os primeiros?”, “o que acontece se não funcionar?”. Às vezes, ainda temos esse modo de pensar colonizado, em que ninguém quer ser o primeiro, preferem imitar países mais desenvolvidos do que inovar. Eu falo principalmente de grandes empresas, que estão muito preocupadas com os rendimentos imediatos e são mais conservadoras. Por outro lado, existem várias empresas menores, startups e empreendedores que estão muito interessados em inovar. E estão fazendo isso contra todas as probabilidades, porque não temos políticas públicas ou mecanismos financeiros que realmente apoiam a inovação. E acho que estamos muito atrasados em um aspecto crucial, que é a saúde dos materiais. Porque a gente vem da perspectiva “Cradle to Cradle”, e isso é muito importante na nossa abordagem sobre Economia Circular: não é só projetar os materiais pra que sejam reciclados, mas também para serem saudáveis e seguros, para as pessoas e o planeta. Nesse sentido, estamos muito atrasados. Por exemplo, temos substâncias permitidas no Brasil que foram proibidas na Europa há muitos anos, especialmente na agricultura, como pesticidas – e existem projetos de leis para tornar isso ainda pior. E ainda sobre a saúde dos materiais: nos nossos cursos e treinamentos a gente sempre gosta de falar sobre a necessidade de redefinir o que as pessoas entendem como qualidade de um produto. Porque agora parece que você pode ter um produto bom, mas que tem alguns defeitos ou efeitos colaterais – como causar alergia ou irritação na pele, ou então virar lixo depois da primeira vez que é usado. Mas não dá pra considerar um bom produto se ele faz mal pra saúde humana ou da biosfera. Então, eu acho que as empresas precisam redefinir esse padrão de qualidade. Porque as pessoas estão pedindo por bons produtos. Isso significa bom em todos os sentidos: bom para as pessoas, bom para o meio ambiente, e que mantenha o valor dos recursos circulando.
“E acho que estamos muito atrasados em um aspecto crucial, que é a saúde dos materiais. Porque a gente vem da perspectiva “Cradle to Cradle”, e isso é muito importante na nossa abordagem sobre Economia Circular: não é só projetar os materiais pra que sejam reciclados, mas também para serem saudáveis e seguros, para as pessoas e o planeta. Nesse sentido, estamos muito atrasados. Por exemplo, temos substâncias permitidas no Brasil que foram proibidas na Europa há muitos anos, especialmente na agricultura, como pesticidas – e existem projetos de leis para tornar isso ainda pior.”
7- Considerando as emergências ambientais, produtos e processos e as transformações do consumo, o que vocês esperam do futuro?
Em um sistema linear, o crescimento econômico depende do consumo de recursos finitos, o que traz o risco iminente de esgotamento de matérias-primas. Com menos recursos disponíveis, há custos cada vez mais elevados de extração, o que traz instabilidade e insegurança em relação ao futuro. Além dos problemas associados à extração insustentável de recursos, ocorre também a contaminação decorrente da produção e descarte de produtos. O modelo linear gera um volume sem precedentes de resíduos inutilizados e potencialmente tóxicos para os seres humanos e os sistemas naturais. A ideia de uma economia circular vem para nos ajudar a superar esses dilemas, e criar novas formas mais inteligentes de habitar este planeta. Então, existe uma oportunidade enorme, porque tudo precisa ser redesenhado. Se pensarmos que tudo foi projetado para uma economia linear, e estamos tentando fazer essa mudança, tudo precisa ser redesenhado levando em conta os princípios da Economia Circular. Essa é a inovação necessária, que é intencional, não só essa ideia de inovação como tendência, para estimular o consumo. Acredito que esta é a maior oportunidade que já tivemos de redesenhar intencionalmente toda a nossa indústria. Em que velocidade isso vai acontecer, a gente não sabe. E vamos ter, e já estamos tendo que lidar com as disrupções e emergências ligadas às mudanças climáticas. Mas a gente acredita que essa é uma transformação que já começou a acontecer, e é sem volta. O futuro é circular e quanto antes a gente começar a trabalhar por ele, melhor.